Eles caminham cerca de uma hora. O rapaz constantemente olha pra trás para ver a Cidade distante. Ela está situada numa planície, cercada de aproximadamente um quilômetro de um gramado morto e algumas trilhas difusas que se cruzam e que deveriam um dia ter sido estradas vivas. Uma fria neblina se deita por toda a região. No caminho, passaram por vários carros mortos e placas de trânsito tortas. A essa distância é possível perceber que a Cidade tem uma forma quase circular, cortada por um riacho de águas negras. Ainda dá pra discernir a cúpula do Teatro, se destacando dos outros prédios cinzentos com a sua pintura rosada desbotada. A penumbra da noite sem fim beija a paisagem, deixando uma tênue iluminação azulada.
A planície é cercada por morros altos, cobertos por uma densa vegetação morta. É muito raro os moradores chegarem naquela distância. Talvez eles tenham saudade das coisas criadas por mãos humanas. Ou talvez eles se sintam mais seguros no ambiente urbano. Ninguém sabe o que se esconde na escuridão abismal além dos montes.
“Porque cê confiou… em mim?” Jean quebra o silêncio.
“Nunsei. Intuição, talvez.”
“A gente tá caminhando faz tempo… e eu não tô cansado… mas eu tenho um instinto de querer sentar, ou tentar respirar fundo…”
“A gente não tem mais corpo. A gente não cansa. Mas nossa mente tá acostumada a se cansar, tendeu?”
“…”
Após mais alguns minutos: “Como cê morreu?”
Raul olha com tamanha secura para seu companheiro de viagem que este percebe que fez uma pergunta que não devia, e baixa o olhar.
Os dois homens seguem sem verbalizar por um quarto de hora até que o rapaz olha para um dos morros e aponta: “minha casa!”
Na lateral do morro coberto por bananeiras de folhagens secas, há um chalé rústico que foi construído apoiado em escoras.
“Isso não é comum por aqui. Nenhuma casa cresce aqui fora.”
O jovem corre por um caminho parcialmente oculto entre as árvores, seguido pelo patrulheiro.
“Está igualzinha como da última vez que eu vi!”
“Não é usual que a casa de uma pessoa específica apareça aqui no mundo dos mortos, tá ligado? Normalmente é tipo um bar fodido que é feito por pedaços de vários bares fodidos. Mas até agora ninguém reconheceu o seu bar, ou…”
Jean ignora completamente seu interlocutor, feliz por estar em casa novamente. Passa veloz pela porta, que estava apenas encostada, se dirigindo direto para o que foi um dia seu quarto.
Raul segue seu protegido com cuidado, atento a algum possível sinal de perigo. Depois do que deve ter sido uma sala de estar, um comprido corredor cheio de portas fechadas e janelões abertos vai até o fundo do chalé. Ele para por um instante numa das aberturas, e vê que estão a uma altura considerável, talvez mais de cem metros. Um oceano de folhas negras se estende até a base do morro. Quando ele entra no quarto, o rapaz está sentado sorrindo na cama, esta apenas com um colchão e sem lençóis. O quarto está quase vazio. Há um cabide torto solitário no roupeiro embutido e um abajur sem lâmpada na mesinha de cabeceira. Todos os móveis são de madeira, de fabricação rústica, assim como a casa. Na ausência de cadeiras, ele senta, um pouco desconfiado, do lado de Jean.
“Valeu por me salvar… e por acreditar em mim.” Jean levanta o punho para dar um soquinho amigável no braço de Raul.
“Sem problema. É essa mais ou menos a minha função aqui. Ajudar pessoas.”, responde, tentando corresponder o soquinho, mas se atrapalha e termina segurando a mão do outro.
Por uns segundos eles ficam se olhando nos olhos, de mãos dadas. Os olhos claros de Jean são temerosos e suplicantes. Os olhos negros de Raul, tensos e desconfiados. O jovem começa a entrelaçar seus dedos nos do homem, mas acaba afastando a mão, receoso. Num gesto rápido, o patrulheiro segura ambos os braços do rapaz com suas mãos e o beija na boca com intensidade.
Raul vai afrouxando o cinto de Jean enquanto devora o seu corpo com os lábios, enquanto o rapaz se entrega e começa a desabotoar a camisa do seu amante. Por um instante passa pela cabeça do patrulheiro se o que está fazendo é apropriado, pois o rapaz está numa situação frágil. Mas esse pensamento logo vai embora.
Raul vira o corpo de Jean com selvageria e baixa suas calças. Começa a preparar para penetrá-lo enquanto segura seu pescoço por trás.
E, nesse momento, alguém arrebenta a porta do quarto com um chute e entra.
“NA MINHA CASA? UM VIADO NA MINHA CASA?” grita um homem desconhecido com o rosto contorcido de raiva.
Raul instintivamente se levanta e saca a arma.
“MEU PRÓPRIO FILHO, VIADO? EU NÃO TE CRIEI PRA SER UMA BICHA!”
Jean entra em pânico, veste suas calças e sai correndo pela porta, gritando “pai, não!”.
O patrulheiro, com as calças arriadas, aproxima o revólver do rosto do homem enraivecido: “escutaqui, verme”
“VAI EMBORA DA MINHA CASA, TU NÃO ÉS MAIS MEU FILHO” continua o homem, olhando para a cama vazia, como se não percebesse a existência de alguém lhe apontando um 38 nas fuças. Ele então desaparece em pleno ar. E a porta é arrebentada com um chute mais uma vez.
“NA MINHA CASA? UM VIADO NA MINHA CASA?” começa de novo.
Raul fica confuso, ainda apontando a arma.
“MEU PRÓPRIO FILHO, VIADO? EU NÃO TE CRIEI PRA SER UMA BICHA!”
Dá um passo a frente e toca com o cano do revólver na cara do homem. Sua imagem se desvanece como fumaça.
“VAI EMBORA DA MINHA CASA…”
Não era real. Nem mesmo era um morto. Era uma impressão, uma memória. O homem desaparece e porta é arrebentada outra vez, a cena se repetindo como um disco de vinil arranhado.
“NA MINHA CASA?…” novamente, mas mais fraco, mais transparente.
Raul veste as calças, atravessa a aparição que finalmente se dissolve, e vai atrás de Jean.
Vindo lá do fundo do corredor, ele ouve um chôro. A porta do banheiro está fechada. Ele bate na porta e chama o nome do jovem. Este continua em prantos. Decide forçar a porta que, por ser velha, cede fácil. Jean está sentado no chão, os cabelos longos cobrindo o rosto. A blusa está arremangada, ele segura o pulso de um dos braços como se estivesse machucado, dolorido. Logo após, ele faz um gesto com os dedos trêmulos em direção ao outro pulso. Ambos têm cicatrizes de cortes.
Raul abraça o rapaz com cuidado e diz: “Tá tudo bem Jean, era só uma memória. Ele não existe, ele não tá mais aqui. Não pode te machucar.” Jean corresponde o abraço com todas as suas forças e chora desesperado. “Eu vou te proteger, ok? Vambora daqui. Eu já sei o que fazer, vamos voltar pra cidade. Eu tenho uma amiga que vai te ajudar.” Com carinho, o patrulheiro coloca seu casaco nos ombros do jovem e o ajuda a levantar. Quando eles passam pelo corredor, não há mais sequer resquício da projeção. Quando saem da casa, Raul limpa as lágrimas de Jean e dá um leve beijo em seus lábios.
Ambos voltam sem silêncio pelo caminho que percorreram.
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