Certa noite (o que é redundante, pois é sempre noite), no Teatro está sendo ensaiado Medeia. A cena que antecede o duplo infanticídio. Raul está num dos corredores laterais, olhando para o palco, com sua pistola antiquada escondida sob o casaco. Todos sabem que ele patrulha por aquelas bandas e se sentem seguros com ele por perto, não há necessidade de ficar ostentando. E ele gosta de assistir os ensaios.
Um longo e torturante grito se faz ouvir, vindo de fora. Os atores param de declamar, confusos. Enquanto alguns membros da plateia se levantam e perguntam sobre o que está acontecendo, Raul sai correndo. Como morador antigo, ele conhece as portas e corredores e brechas entre edifícios, pelo menos na medida que a Cidade e suas constantes modificações permitem. Em instantes ele já está no beco lateral do Teatro, de arma em punho, seguindo o grito que já enfraquece. No momento em que ele chega no mictório do bar ao lado, já é tarde: uma figura vestindo uma túnica cinzenta de monge estrangula um homem gordo, que rapidamente se torna pó. A figura se volta para Raul, e ele vê o que há sob o capuz: sombra, apenas sombra. Ele hesita antes de disparar uma bala contra o encapuzado, e este consegue fugir, ileso. O patrulheiro persegue a criatura pelos becos labirínticos, mas eventualmente é deixado para trás. Ele pragueja e chuta a parede, furioso, e decide voltar.
Alguns dos frequentadores do Teatro estão lá, atônitos, ao redor de um montinho de cinzas que se destaca no chão imundo.
“Raul, o que aconteceu?”
“Caralho, eu cheguei tarde demais! Alguém que parecia, sei lá, um monge… estrangulando um homem!” - diz, apontando para o montinho.
“Ele… o matou?” - pergunta uma Medeia, com a maquiagem cênica borrada. Raul meneia a cabeça.
Faz-se um silêncio pesado. Existem dois temas tabus na Cidade: um é como se morreu no mundo (é algo muito pessoal e é de bom tom esperar a pessoa tocar no assunto); e o outro é quando um morto morre (a morte final é o grande medo de todo morador).
A diretora se aproxima de Raul, levantando sua veste grega para desviar do que foi um dia uma pessoa:
“Você viu quem era?”
“Eu só vi o manto. E dentro, parecia… a porra de uma sombra.”
“Pode ser algum tipo de… criatura?”
“Difícil dizer… faz muito tempo que a Cidade não é atacada por um monstro ou alguma merda assim.”
“Não há muitas coisas capazes de… matar um morto, correto?”
“Exato. Há as balas da minha arma. E eu nunca vi nenhum ser estrangular um morto com as próprias malditas mãos.”
Raul se agacha para examinar as cinzas, a essa hora já se tornando etéreas, como se levadas por um vento que não existe. Depois de alguns instantes coçando a barba, fala para os presentes:
“Galera, parece que tem um filhodaputa matador de mortos na cidade. Eu sugiro que ninguém ande por aí sozinho, em grupos é mais seguro. Eu vou dobrar as rondas pelos becos. Não quero que isso aconteça com mais ninguém, ok? Espalhem isso para os outros. Eu vou fazer de tudo para encher o cu desse desgraçado de bala.”
Todos concordam em silêncio, e se dirigirem de volta ao Teatro, com a diretora da peça delegando quem avisará quem.
Raul fica mais uns minutos olhando os ladrilhos quebrados do chão, com seus olhos fundos e cansados, antes de dizer mais uns três palavrões e ir embora.
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