Raul cobre Jean, que está deitado no sofá, com um lençol remendado. Este está de olhos abertos, calado e com aparência de cansado. Raul passa pelo vaso e pelo calendário e vai até o cômodo ao lado, uma cozinha praticamente vazia, e encosta a porta.
“A gente sabe que ele não pode dormir, mas acho que ele precisa do apoio psicológico da ideia do cobertor”
“Com certeza, principalmente se ele é um recém-chegado. Mas então, continuando, você desvendou o mistério?”
“Hm. Sim e não. Mais não do que sim.”
Makeba se senta num banquinho, com a corrente e a joia curativa ainda na mão. Raul se encosta na parede.
“Acho que a gente tá diante de alguém especial. Acho que ele tem poderes, por assim dizer. Ele materializou, ou atraiu, a memória do pai violento dele. A própria casa no morro pode ser uma manifestação.”
“Faz muito sentido”
“E a criatura-manto… Eu acho que ela se precisa desse poder dele pra ganhar corporeidade e dar sequência à sua própria agenda”.
“É algo contra o qual nós nunca lidamos antes”
“Sim. Eu já vi poltergeists, obsessores, diabretes, mas isso é território novo.”
“E o que a gente vai fazer agora?”
“Bem, eu não vou sair do lado do Jean. Cedo ou tarde, o manto vai voltar. E eu vou descarregar as seis balas de luz no cu do filhodaputa.”
“Mmm… eu pressinto um certo interesse pessoal nesse caso…”
“Não olha pra mim assim, Makeba, eu perguntei pro Jean e ele tinha 22 quando morreu, tá?”
“Ei, cê é que tá projetando suas inseguranças, eu só fiz uma observação...”
Ambos ficam em silêncio, Makeba sorrindo.
Raul fica sério. “Eu gosto dele, ok? De verdade.”
“Eu sei, Raul. Eu percebi.”
Ele abre a porta e vai em direção ao rapaz no sofá. Senta-se numa das pontas e faz cafuné na barba rala de Jean.
“Quando tudo isso acabar, eu vou te levar ao teatro.”
“Mas… as pessoas não vão me odiar? Eu meio que… matei um deles…”
“Nah. Pessoal gente boa. Sempre ajudam os recém-chegados a se adaptarem.”
Jean segura forte na mão de Raul.
“Eu me sinto tão constrangido… por…” o jovem faz um gesto mostrando as cicatrizes dos pulsos.
Raul se senta no sofá e Jean abre espaço para ele.
“Olha, ninguém chega aqui na Cidade sorrindo. Eu bebi meu caminho até aqui. Isso também é uma forma de…”
No silêncio que se segue, o rapaz toma as mãos do homem nas suas. “Eu entendo”.
Eles encostam a testa um no outro e ficam assim por um bom tempo.
Era uma cidade morta. Habitada por pessoas mortas, que tentavam encontrar seu rumo entre prédios mortos numa eterna noite morta.
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