Esse conto foi baseado num sonho que eu tive há algum tempo, em meados de 2017 talvez, que deixou uma impressão muito forte em mim. Normalmente, pelo menos na minha experiência, sonhos são muito malucos e surreais. Quando eles trazem alguma ideia boa para um roteiro, eu preciso “limpar” as partes mais absurdas e inconsistentes. Mas, dessa vez, o sonho veio como um "filme" quase prontinho, sem necessidade de muita adaptação.
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Era uma cidade morta. Habitada por pessoas mortas, que caminhavam sem rumo entre prédios mortos numa eterna noite morta.
A arquitetura é caótica. Casarões tão antigos que talvez tenham presenciado o ocaso da inquisição, lado a lado de edifícios atuais de concreto, testemunhas da vã esperança do progresso neoliberal. Cada vez que um prédio começa a morrer no mundo dos vivos, ele começa a aparecer aqui. O resultado é que a cidade parece ter sido projetada por um urbanista bêbado. E os espaços entre as construções criam um labirinto de passagens estreitas, impossível de mapear, em constante reconstrução.
A qualquer hora, a noite enevoada ilumina fracamente as ruas e fachadas. Nos becos, os cães mortos passeiam entre garrafas mortas de uísque, cartas de amor nunca entregues, brinquedos esquecidos e cigarros jogados fora pela metade. Nos telhados, gatos mortos observam as pessoas lá embaixo, deitados do lado do cachecol de algum suicida ou de uma janela quebrada por uma bala perdida. Nas calçadas, os habitantes perambulam devagar (mortos não tem muitos motivo para se apressar) e em silêncio (mortos não sentem tanta necessidade de manter conversações desnecessárias).
Os mortos não tem mais necessidades humanas. Não é mais preciso comer, dormir ou trabalhar. Mas eles ainda tem hábitos. Muitos vagam a esmo pelas ruas, como uma pantomina do que eles faziam em vida (da casa para o metrô, do metrô para o trabalho). Outros se reúnem no que um dia foram bares, ainda que seja apenas para dividir uma bituca de baseado, ou saborear o restinho de gim numa garrafa que foi encontrada intacta. Essas relíquias valem muito.
Todos aqueles que, em vida, faziam e amavam a arte (qualquer tipo de arte), se reúnem no Teatro. Ninguém sabe que nome ele teve, nem mesmo em que cidade havia sido originalmente construído. Mas como é o único da Cidade e tem características de vários estilos arquitetônicos, alguns moradores desconfiam que seja um pouco de todos os teatros que já morreram. Talvez a cada vez que um teatro no mundo dos vivos seja transformado em um estacionamento ou igreja, o Teatro ganhe mais uma fileira de cadeiras, camarotes e camarins ou apareça mais uma portinhola para um corredor secreto.
Se alguém entrar no Teatro, a qualquer momento da noite sem fim, irá ver pessoas falando baixinho. Alguns em grupinhos nos corredores, outros solitários na plateia (todos devotam uma reverência àquele local e, embora não existam regas escritas, elevar a voz é um desrespeito). O palco costuma ser ocupado por várias trupes vestidas com figurinos incompletos, ensaiando e repassando textos. Dificilmente um texto moderno, são mais comuns peças antigas de civilizações mortas. Ocasionalmente o palco é liberado e usado para uma apresentação em si e, quando acontece, é apenas um trecho da peça, faltando o final ou alguma parte chave para a história. É raro que algum diretor apareça com um texto próprio. Quando isso acontece, é um texto ainda não terminado, que já foi reescrito mil vezes e necessita de mais e mais revisões. Os mortos não são conhecidos por criarem coisas.
Mas todas essas pessoas se reúnem ali. E ali saciam sua fome de contato humano. Pode ser apenas um olhar, uma troca de palavras sussurradas, ou até mesmo a companhia em silêncio.
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